quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

REPÚBLICA DO BARULHO

Dos 118 anos de vida republicana, o Brasil já viveu 55 de ditadura declarada e em estado de sítio. Os últimos vinte e dois anos, nós os temos vivido em liberdade democrática. Mas o que nos trouxe a liberdade democrática em ganhos substanciais? Possibilidades de livre-pensar-expressar-agir. Chamo a atenção para esse último livre-agir, pois a possibilidade democrática pode, sem a rigidez das leis e da Justiça, levar o/a cidadão/ã à possibilidade da desordem, quando menos da libertinagem. Seria então a democracia promotora do cidadão/ã libertino/a? Até que a Lei seja imposta e cumprida pela Justiça, não!

Nesse quase quartel de século, salientam-se quinze anos de progressiva melhora nos níveis econômicos e sociais do Brasil. Embora os juros continuem na estratosfera, atualmente já é possível a um assalariado de baixa renda adquirir bens de consumo antes só acessíveis aos mais aquinhoados. Tendo em vista a grande demanda de produtos e as facilidades de aquisição, os eletro- eletrônicos entraram e entram com tal facilidade em milhões de lares brasileiros que é quase impossível alguma casa não ter pelo menos um desses produtos: liquidificador, geladeira, rádio, aparelho de tv, etc. Dentre esses utilitários, salienta-se o aparelho de som. São os ares da estabilidade econômica!

Em tese, essa estabilidade aproximou as classes D e C das classes mais altas, pelo menos no que diz respeito ao comportamento consumista e à moda, inclusive no gosto musical e no prazer pelo barulho. As classes se misturaram espontaneamente – sãos os ares da democracia! – e, com poucas diferenças quando, consumidores do lixo musical ora produzido no Brasil, mormente no Nordeste, mastigam-no e o espalham por aí. De bom grado são receptores e produtores de barulho. Uma turba inconseqüente unida pelo hedonismo desenfreado e ruinoso para a saúde. Nesse aspecto, essa mistura de classes é um desastre!

Desastre não porque a democracia é desastrosa, pois ruim com ela, pior sem ela, já dissera alguém. No entanto, no Brasil, a ânsia pela liberdade de expressão foi tanta que pouco a pouco foi se instalando a idéia equivocada de que a democracia avança além das leis. Ou seja, a liberdade é tal que tudo parece ser possível e permitido. Além disso, um viés ideológico republicano nos massacra repetindo com tal psitacismo que somos um povo alegre, caloroso e dado às festas que chegamos a acreditar, não apenas nisso, mas em muito mais naquilo que querem que acreditemos e sejamos. Isso causa certa confusão no nosso livre-agir: parece que brasileiro/a é aquele/a criatura que vai a todas as festas o ano inteiro, levanta as mãozinhas para o alto, tira os pés do chão, bate palmas e, no grito de “aí, galera”, todos parecem iguais perante o barulho. A essa inconseqüência, somam-se a lenidade e a lazeira de certas autoridades sobre o que seja o direito individual, a falta de coibição dos excessos, a impunidade aos infratores da lei e da ordem e o mais grave, a conivência oficial com o barulho. Uma lástima!

Não raro e a cada dia mais freqüente, o barulho tem o patrocínio de certas autoridades constituídas, as executivas e/ou legislativas das cidades e do Estado. Pronto, sacramentou-se o barulho, a zoada. E para certas autoridades constituídas, fomentadoras desse caos sonoro, as executivas e as legislativas, muitas simpatias e votos, votos, votos…

É impossível não conciliar o barulho à evolução tecnológica na produção de aparelhos de som possantíssimos, assim como a crescente massificação do produto tecnológico da música: o CD. As músicas, o mais das vezes, são aglomerados de sons que clamam pelo remexido de certas partes do corpo, não do cérebro e sem entrar no mérito da questão, tanto melodia quanto letra são de uma pobreza inferior a de Jó. Pobre Jó!

Quanto mais possante a fonte sonora, mais potente e viril se mostra à sociedade o tolo que a possui. Tolo sim, pois não sabe dos malefícios que o barulho causa a si e pior que ser tolo é ser malvado (nessa questão de gênero, saliento que a onipotência e petulância parte invariavelmente dos homens sem, no entanto, excluir a conivência das mulheres). Malvados que montam verdadeiros arsenais sonoros puxados às vezes por carrocinhas. Além de se machucarem, perturbam, desolam, constrangem e fazem adoecer principalmente aqueles/as que não podem ou não têm como se proteger de suas infames carrocerias sonorizadas. Aqui aponto o individualismo em detrimento da idéia do coletivismo que se opõe claramente à idéia da possibilidade democrática. Além do que se desfigura a idéia do que sejam direitos individuais num regime democrático.

Democracia carece de leis que, em igualando todos/as perante si, sejam postas em cumprimento. Para nós brasileiros/as, pelo mau passo que estamos dando, caminharemos inexoravelmente para a degradação da democracia tão ardentemente desejada e sofregamente conquistada? As leis precisam ser aprimoradas e aplicadas indistintamente sob pena de vermos os maus avançarem sobre os bons. Esse avanço lembra Rui Barbosa no célebre discurso no Senado Federal em dezembro de 1914.: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Esta foi a obra da República nos últimos anos”.

A república aproximou as classes e a democracia favoreceu o livre-pensar-expressar-agir. No entanto estamos pondo a perder a liberdade como se fôssemos um pássaro aprisionado que, solto, atabalhoadamente sai voando e se choca contra uma parede de vidro. As autoridades constituídas têm o poder de frear esse ímpeto. É só aplicar a lei, indistintamente, democraticamente, além do que a sociedade tem o direito de saber as medidas que estão sendo tomadas para protegê-la e na base de quais leis. Assim, muito dos futuros desrespeitos à ordem e à lei poderão ser inibidos.

Pedir silêncio não é um ato anti-democrático. Num tempo em que quase não se usam as palavrinhas mágicas da boa convivência ou que num transporte público não se cede o lugar a uma pessoa idosa ou mesmo que diante desta, palavrões sejam expelidos como se fossem pérolas, entre outras patifarias da contemporaneidade, não é demais lembrar: povo civilizado é aquele que, governado por homens e mulheres educados e cultos e honestos, têm leis passíveis de serem cumpridas. Isso não é conservadorismo. Pedir silêncio é pedir saúde e qualidade de vida. Merecemos cidades bem cuidadas e menos barulhentas. Merecemos que as leis sejam aprimoradas ou quando menos as que vigem sejam cumpridas. Merecemos a res publica, diferentemente do republicanismo. Merecemos um povo feliz, mas muito mais e melhormente educado. Merecemos civilidade e cidadão/ãs conscientes e promotores do bem comum. Nesse ponto, dou destaque a um aforismo de São Francisco de Assis: “o bem não faz barulho; o barulho não faz bem”.

Prof. Dr. Eduardo Xavier – Prof. de Canto da Universidade Federal de Alagoas

Palestrante

Maceió, 12 de Novembro de 2007